O nascimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): uma conquista da sociedade brasileira
- Casa do Caminho Irmãos Samaritanos
- 17 de dez. de 2024
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Atualizado: 17 de mar.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), sancionado em 13 de julho de 1990, representa um marco na proteção e garantia dos direitos da infância e juventude no Brasil. Sua criação foi resultado de um longo processo de mobilização social, inspirado por mudanças globais e pela necessidade de romper com o modelo autoritário que, até então, tratava crianças e adolescentes como "objetos de tutela" do Estado, e não como sujeitos plenos de direitos.
O contexto anterior: um Brasil sem proteção
Antes do ECA, a infância e a adolescência eram regulamentadas pelo Código de Menores (1927 e 1979), uma legislação que via crianças e adolescentes, principalmente os mais pobres, como potenciais "delinquentes" que precisavam de controle. O código estava embasado na chamada "Doutrina da Situação Irregular", ou seja, qualquer menor que estivesse em condição de vulnerabilidade (como pobreza, orfandade ou abandono) era considerado um "problema social" a ser corrigido pelo Estado.
Na prática, isso significava que milhares de crianças eram internadas compulsoriamente em instituições reformatórias e abrigos superlotados, onde sofriam violência, maus-tratos e privação de liberdade sem julgamento justo. Essa abordagem repressiva não distinguia crianças em situação de vulnerabilidade das que tinham cometido infrações – todas eram tratadas como um "caso policial". Além disso, não havia um compromisso do Estado com políticas de prevenção e direitos básicos, como acesso universal à educação, saúde e proteção familiar.
A influência internacional e a redemocratização
A criação do ECA foi impulsionada por um movimento global de defesa dos direitos da infância. Em 1989, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança, que estabeleceu um novo paradigma: crianças e adolescentes são cidadãos de direitos e devem ser tratados com prioridade absoluta. O Brasil, que vivia um período de redemocratização após a ditadura militar (1964-1985), foi um dos primeiros países a assinar a convenção, comprometendo-se a adequar sua legislação às novas diretrizes internacionais.
Com a Constituição de 1988, houve uma grande virada na proteção da infância. Pela primeira vez, o Brasil reconheceu expressamente, no artigo 227, que é "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária". Esse artigo foi um divisor de águas, pois rompeu com a lógica punitivista e assistencialista e estabeleceu o princípio da "proteção integral", que se tornaria a base do ECA.
A mobilização social e a criação do ECA
A Constituição de 1988 garantiu direitos, mas ainda faltava uma legislação específica para regulamentar esses princípios. Foi então que movimentos sociais, organizações da sociedade civil, especialistas e juristas iniciaram um amplo debate para criar um novo estatuto. Houve intensa participação da sociedade nesse processo: mais de 1 milhão de assinaturas foram coletadas para pressionar o Congresso Nacional a aprovar uma lei moderna e efetiva para a infância.
O texto do ECA foi elaborado por um grupo multidisciplinar de especialistas, incluindo advogados, juízes, pedagogos e assistentes sociais, sob coordenação de entidades como a Fundação Abrinq, o Unicef, a Pastoral da Criança e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. O processo foi conduzido com participação ativa de adolescentes em situação de vulnerabilidade, que deram depoimentos sobre suas experiências e necessidades.
Após intensos debates no Congresso, o Estatuto foi aprovado e sancionado pelo então presidente Fernando Collor de Mello em 13 de julho de 1990. O ECA trouxe principais inovações, como:
O reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e não como objetos de tutela do Estado;
A criação de uma rede de proteção e responsabilização coletiva, envolvendo a família, a sociedade e o Estado;
A substituição do modelo repressivo do Código de Menores pelo Sistema de Garantia de Direitos, com foco na prevenção e proteção integral;
A instituição dos Conselhos Tutelares, órgãos independentes para garantir os direitos das crianças em cada município;
A criação de medidas socioeducativas para adolescentes infratores, com foco na ressocialização e reintegração.
O impacto do ECA e os desafios
A criação do ECA foi um divisor de águas na forma como o Brasil lida com sua infância e adolescência. Desde então, houve avanços expressivos, como:
Aumento da escolarização infantil, com a quase universalização do ensino fundamental;
Redução drástica da mortalidade infantil e melhoria da saúde básica;
Maior proteção contra abusos e exploração, com leis complementares ao ECA, como a Lei da Escuta Protegida e a Lei Menino Bernardo.
No entanto, os desafios persistem. A violência contra crianças e adolescentes, a evasão escolar e a exploração do trabalho infantil ainda são problemas graves. Além disso, há tentativas recorrentes de retrocessos, como propostas para a redução da maioridade penal, que contrariam os princípios do ECA.
Mais de 30 anos após sua criação, o Estatuto da Criança e do Adolescente segue sendo uma conquista da democracia brasileira. Seu pleno cumprimento depende de políticas públicas eficazes, do compromisso da sociedade e da defesa contínua de seus princípios. Como afirmam especialistas, o ECA não é apenas uma lei, mas um compromisso coletivo com o futuro das novas gerações.

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