Cultura de Doação no Brasil: Será que Somos Generosos?
- Casa do Caminho Irmãos Samaritanos

- 17 de fev.
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Atualizado: 17 de mar.
Doar para causas sociais faz parte da cultura brasileira, mas com particularidades que levantam a pergunta: afinal, o brasileiro é generoso? Diferentes pesquisas traçam um retrato paradoxal. Por um lado, o Brasil é internacionalmente reconhecido pela solidariedade em situações de emergência – basta ver as campanhas massivas de arrecadação após enchentes, deslizamentos ou durante a pandemia de Covid-19. Por outro lado, os indicadores formais de filantropia colocam o país atrás de muitas nações em termos proporcionais. No World Giving Index 2024, ranking global de generosidade da Charities Aid Foundation, o Brasil aparece apenas na 86ª posição entre 142 países avaliados
Embora tenha subido algumas posições em relação ao ano anterior, nosso índice de generosidade foi de 38%, bem distante das nações líderes, como Indonésia (que lidera com ampla maioria de cidadãos doando e voluntariando). Para efeito de comparação, 90% dos indonésios doam dinheiro a organizações sociais e 65% fazem trabalho voluntário, segundo o mesmo relatório.
Já no Brasil, o comportamento solidário mais comum é “ajudar um desconhecido”, praticado por 65% das pessoas – um indicador de empatia interpessoal. Porém, apenas 34% dos brasileiros declararam ter doado dinheiro a instituições de caridade no último mês e 15% engajaram-se em voluntariado, conforme dados de edições recentes do World Giving Index. Essa disparidade sugere que, embora o brasileiro seja solidário no dia a dia e em gestos informais, há baixa adesão à doação organizada e contínua por meio de ONGs ou fundações.
Números da filantropia: doações no Brasil versus outros países
Quando se observa o volume financeiro de doações, o Brasil investe relativamente pouco em filantropia se comparado a economias desenvolvidas. Estimativas do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS) indicam que as doações individuais para causas socioambientais no país somaram cerca de R$ 12,8 bilhões em 2022, valor que equivale a apenas 0,13% do PIB brasileiro. (pesquisadoacaobrasil.org.br)
Esse percentual é modesto frente aos 2% do PIB que as doações representam nos Estados Unidos, onde a cultura de filantropia é mais consolidada, ou mesmo diante de países vizinhos da América Latina que possuem índices maiores de engajamento. A Pesquisa Doação Brasil 2022 mostrou, porém, uma tendência positiva: 84% dos brasileiros com mais de 18 anos e renda familiar acima de um salário mínimo realizaram algum tipo de doação naquele ano (seja dinheiro, bens ou tempo como voluntário), um salto expressivo ante os 66% observados em 2020. Esse crescimento foi puxado, em parte, pela mobilização solidária durante a pandemia, quando milhões contribuíram com cestas básicas, doações online e outras ajudas emergenciais. Entretanto, quando o recorte é apenas doação em dinheiro para ONGs e projetos sociais, o percentual de doadores cai para 36% da população. Ou seja, cerca de um terço dos brasileiros doa para organizações formalizadas – um patamar estável nos últimos anos. Em países como o Reino Unido ou Canadá, pesquisas similares apontam que mais de 50% das pessoas fazem doações regulares a instituições de caridade. A diferença não é de generosidade inata, mas de estrutura e confiança: nesses países, há longa tradição de filantropia organizada, incentivos fiscais e um ambiente de confiança maior nas instituições do terceiro setor.
Segundo o World Giving Index, o Brasil chegou a melhorar temporariamente sua colocação durante a pandemia (em 2021 atingiu sua melhor posição histórica, reflexo da onda de solidariedade naquele momento). Mas a estabilização em torno do 80º lugar nos anos seguintes indica que a cultura de doação brasileira permanece oscilando e ainda tímida no cenário global. “A estabilidade da cultura de doação no Brasil não surpreende, mas é interessante notar como políticas públicas voltadas a promover a filantropia fizeram diferença em países como Cingapura”, analisa Paula Fabiani, CEO do IDIS. Ela se refere a iniciativas governamentais lá fora – desde incentivos fiscais robustos até programas de equiparação de doações individuais (“matching”) – que impulsionaram a generosidade. Esses exemplos internacionais servem de aprendizado: com estímulos certos, é possível elevar o engajamento filantrópico também por aqui.
Por que doamos pouco? Desconfiança, incentivos e outros entraves
Especialistas apontam que o brasileiro não é menos solidário que outros povos, mas enfrenta barreiras específicas para doar mais. Uma das maiores é a desconfiança. Ainda persiste o receio de que o dinheiro doado não seja bem aplicado ou possa ser desviado – reflexo de casos de corrupção ou má gestão que ganham repercussão e acabam manchando a imagem do terceiro setor. De acordo com uma pesquisa do Movimento Arredondar, cerca de 24% dos não-doadores citam motivos ligados à falta de confiança e transparência: muitos não têm visibilidade sobre o destino do dinheiro ou temem fraudes ao fornecer dados para doação online. “Há uma desconfiança generalizada sobre o uso do dinheiro, que vira barreira para doar antes mesmo de se buscar informação sobre prestação de contas”, explica Beatriz Azeredo, do Grupo MOL, coautora do estudo. Essa percepção, entretanto, nem sempre condiz com a realidade – hoje muitas organizações possuem auditorias independentes e divulgam relatórios financeiros – mas o desafio de comunicação permanece. Outro obstáculo é a falta de hábito e conhecimento. Muita gente simplesmente não foi estimulada a doar. Na mesma pesquisa, 14% disseram que nunca foram solicitados ou não pensaram no assunto. Isso sugere que campanhas e convites diretos fazem diferença: quem é abordado para doar – seja por um parente engajado, seja no caixa de um supermercado em campanhas de doação arredondando troco – tende a se tornar doador. Há também a ideia equivocada de que “é preciso ter muito dinheiro para doar”. Quase metade dos não-doadores apontam dificuldades financeiras como razão principal para não contribuírem regularmente.
De fato, num país com renda média baixa e muitas famílias endividadas, é compreensível que doações não sejam prioridade no orçamento. Entretanto, iniciativas de microdoação (como doar poucos reais, ou arredondar centavos em compras) buscam mostrar que qualquer quantia ajuda e que a doação pode caber no dia a dia.
Um fator estrutural que limita a filantropia no Brasil é a escassez de incentivos fiscais abrangentes. Diferentemente de nações onde as doações podem ser deduzidas amplamente do imposto devido, aqui os benefícios são restritos. Pessoas físicas só podem deduzir doações feitas a fundos especiais (como os fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Idoso, e projetos aprovados em leis de incentivo cultural/esportivo), limitadas a 6% do imposto de renda. Doações diretas a ONGs, em geral, não geram abatimento fiscal para o cidadão comum. Além disso, doações elevadas podem sofrer tributação estadual de transmissão (variando entre 4% e 8%). “O Brasil não diferencia doações para organizações sociais das doações por herança, e as regras de isenção para ONGs são complexas e variam conforme o estado”, destaca o relatório do Arredondar. Em resumo, nosso sistema tributário ainda penaliza ou não estimula a cultura de doação. Some-se a isso a falta de informação: muitas pessoas desconhecem causas confiáveis para apoiar ou não têm o hábito de planejar doações. Enquanto em países com tradição filantrópica é comum famílias definirem anualmente parcelas de renda para caridade, no Brasil a doação é frequentemente feita “no impulso”, motivada por apelos emergenciais ou campanhas na mídia. Aliás, ações emergenciais mobilizam enormemente os brasileiros – o que mostra o potencial latente de solidariedade. A maior parte da população doa especialmente quando vê uma tragédia na TV ou nas redes sociais. Por exemplo, no fim de 2023 uma enxurrada devastou cidades no Rio Grande do Sul e gerou ampla comoção; em poucas semanas, empresas e cidadãos doaram toneladas de donativos e milhões de reais em fundos de ajuda humanitária (dados que, inclusive, não entraram nas pesquisas formais por terem ocorrido após a coleta do World Giving Index daquele ano).
No dia a dia, porém, campanhas permanentes enfrentam apatia após o fim do noticiário sobre o desastre. Esse comportamento reativo indica uma cultura de doação ainda não enraizada, que precisa ser trabalhada para se tornar contínua e planejada, não apenas pontual.
Campanhas de sucesso e exemplos de generosidade
Embora os obstáculos existam, há inúmeros casos inspiradores que provam a generosidade do brasileiro – quando bem canalizada. Campanhas tradicionais como o Criança Esperança, realizada pela TV Globo em parceria com a UNESCO há quase 40 anos, já arrecadaram mais de R$ 445 milhões em doações ao longo de sua história, apoiando mais de 6 mil projetos sociais pelo país.
A edição de 2022, por exemplo, mobilizou R$ 15,8 milhões em doações individuais e de empresas em prol de iniciativas voltadas à educação e cultura de crianças vulneráveis.
Já o Teleton, maratona televisiva do SBT em benefício da AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), costuma bater recordes de arrecadação a cada ano – em 2022 chegou a R$ 34 milhões reunidos para manutenção de centros de reabilitação e hospitais ortopédicos. Esses eventos contam com forte apelo emocional, apoio de celebridades e ampla divulgação, revelando o quanto a população atende a convites claros para doar. Em outra frente, a campanha Natal Sem Fome, retomada pela ONG Ação da Cidadania, bateu a meta em 2021 ao arrecadar mais de 2 mil toneladas de alimentos, distribuídas para famílias em insegurança alimentar plena. Durante a pandemia de Covid-19, emergiu a campanha “Tem Gente Com Fome”, liderada por diversas organizações e coletivos, que em poucos meses de 2021 angariou cerca de R$ 20 milhões, levando cestas de alimentos a comunidades afetadas pela fome. Iniciativas digitais também ganharam espaço: plataformas de vaquinhas online viabilizaram projetos comunitários e tratamentos de saúde, mostrando a força do financiamento coletivo. O movimento internacional Giving Tuesday, adaptado aqui como Dia de Doar, tem crescido anualmente. Em 2022, centenas de organizações brasileiras participaram desse dia de mobilização, e algumas reportaram aumentos significativos em doações e novos doadores engajados em comparação com anos anteriores.
Casos individuais são igualmente tocantes. Em 2023, um empresário anônimo doou R$ 50 milhões para a reconstrução de escolas públicas na Bahia após enchentes, demonstrando confiança em uma organização local para gerir o recurso. No interior do Ceará, uma senhora aposentada chamou atenção ao destinar parte de sua modesta pensão para apoiar um abrigo de idosos da região – “Não é muito, mas é de coração”, disse à rádio comunitária local, inspirando vizinhos a contribuírem também. Tais histórias repercutem e incentivam outros gestos. Pesquisas indicam que a visibilidade das doações é fator motivador: quando as pessoas enxergam resultados concretos de uma campanha – seja a construção de uma creche financiada coletivamente, seja o depoimento de alguém cuja vida melhorou graças a doadores – elas tendem a se engajar mais. Transparência e feedback sobre o impacto das doações, portanto, têm sido receitas de sucesso nas campanhas bem-sucedidas. ONGs brasileiras vêm investindo em mostrar resultados: relatórios, vídeos nas redes sociais agradecendo doadores, eventos de prestação de contas. Essa prestação de contas ajuda a quebrar a desconfiança e estreitar o laço com o doador, tornando-o recorrente. Além disso, novas gerações parecem mais propensas à generosidade estruturada. A Geração Z, que cresceu em meio a causas globais nas redes sociais, demonstra interesse em apoiar projetos alinhados aos seus valores (como ambientalismo, equidade racial, proteção animal). Segundo a Pesquisa Doação Brasil, jovens de 18 a 24 anos já apresentam taxas de doação comparáveis à média nacional, e muitos o fazem via meios digitais. Explorar essa predisposição, oferecendo formas simples de contribuição via Pix, aplicativos e redes, é visto como fundamental para o futuro da filantropia no país.
O futuro da cultura de doação: caminhos para ampliá-la
O Brasil tem avançado lentamente, mas de forma consistente, na construção de uma cultura mais forte de doação. Para especialistas, alguns passos são essenciais para que sejamos, de fato, uma sociedade mais generosa de maneira estruturada. Um deles é a educação para a doação: inculcar desde cedo valores de solidariedade e mostrar, até mesmo no currículo escolar, a importância do engajamento cidadão. Projetos piloto em escolas, onde crianças participam de campanhas de arrecadação para causas locais, têm tido êxito em criar uma geração mais engajada. Outro ponto é ampliar os incentivos e facilidades para doar. Isso passa por reformas legais – por exemplo, aumentar ou simplificar as deduções fiscais para doações, como propõe a Frente Parlamentar da Filantropia no Congresso – e por inovação no setor financeiro. Hoje, já é possível doar via Pix usando chaves estáticas (como no Criança Esperança, que adotou chave Pix para receber contribuições pequenas em 2023), ou ainda inscrever-se em plataformas que debitam automaticamente doações mensais de contas bancárias. Tornar o ato de doar fácil, acessível e transparente é o mantra do Movimento Arredondar, que permite ao consumidor doar centavos em compras no varejo e acompanha o uso desse dinheiro. Essa e outras ferramentas buscam integrar a doação ao cotidiano, não deixando a solidariedade apenas para momentos excepcionais.
A construção da confiança é outro pilar. As instituições do terceiro setor, cientes disso, têm trabalhado para aumentar sua credibilidade. Certificações de boas práticas, como o Selo Doar (que avalia governança e transparência de ONGs), ajudam o público a identificar organizações confiáveis. Veículos de mídia também têm seu papel: ao divulgar mais histórias de impacto positivo das doações e menos generalizações negativas, contribuem para mudar percepções. Parcerias público-privadas podem dar escala à cultura de doação. Em Cingapura, citado anteriormente, o governo criou programas onde cada doação feita por um cidadão a determinada causa é igualada pelo Estado em igual montante. No Brasil, algumas cidades experimentam “fundos correspondentes” com empresas: a cada real doado por funcionários em campanhas internas, a empresa coloca outro real. Grandes doadores – filantropos de alta renda – também têm emergido e podem atuar como influenciadores. Nos últimos anos, bilionários brasileiros anunciaram doações vultosas, como para a educação (caso da família Moraes, dona da Votorantim, que investiu R$ 660 milhões em um fundo para inovação no ensino público). Essas ações, além do benefício direto, lançam luz sobre a filantropia e estimulam outros empresários a fazerem o mesmo.
Paula Fabiani, do IDIS, defende que o Brasil aprenda com quem fez a lição de casa: “Políticas de incentivo à filantropia, matching de doações individuais e estímulo ao voluntariado corporativo tiveram efeitos positivos em outros países e podem ser exemplo para nós”. A expectativa é que, com a economia se recuperando e a sociedade mais consciente pós-pandemia, a porcentagem de brasileiros doando regularmente continue crescendo. Quase metade dos doadores atuais (45%) afirmam que pretendem doar mais no próximo ano do que doaram no anterior, segundo a Pesquisa Doação Brasil.
Ou seja, há uma disposição de ampliar a solidariedade – desde que haja meios e confiança. Se conseguirmos derrubar barreiras de desinformação e criar um ambiente mais favorável (seja via incentivos fiscais, seja via tecnologia e transparência), poderemos ver a cultura de doação florescer e o Brasil galgar posições no ranking da generosidade. Mais importante que subir em índices internacionais, porém, será o impacto real na sociedade: com mais doações, mais projetos sociais poderão ser expandidos, alcançando quem precisa; problemas como fome, pobreza e falta de acesso a serviços básicos poderão ser enfrentados com recursos complementares aos do Estado. Ser generoso, afinal, não é qualidade inerente de um povo, mas o resultado de escolhas coletivas. E o Brasil parece estar num caminho de descobertas, aprendendo a transformar sua solidariedade já conhecida – aquela do dia a dia e das emergências – em uma cultura perene de filantropia que seja motivo de orgulho nacional.







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